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As Trocas da Pele

Katia Canton

Eis a tatuagem: minha alma constantemente presente, branca, cintila e difunde-se nos vermelhos que se permutam...Assim, complexa e um tanto assustadora, surge nossa carta de identidade. Cada um tem a sua, original, como a impressão de seu polegar ou a marca de seus maxilares. Nenhuma carta é igual a nenhuma outra, todas mudam com o tempo; fiz tanto progresso desde minha juventude triste e trago na pele o traço e os caminhos abertos por aquelas que me ajudaram a procurar minha alma difusa. Michel Serres (1)

A única totalidade, o único mundo que existe realmente é aquele que você abraça. Riqueza infinita da vida da alma: só ela existe. Pierre Lévy (2)

A preocupação com os limites, as identidades e alteridades do corpo, já apareciam na série anterior da artista, Anfíbios. Ali, Xavier mostrava corpos mal delimitados por contornos de plásticos, que eles vestiam, e que se diluíam no mesmo azul das piscinas onde estavam mergulhados.

Naquela obras, a idéia de desconstrução do corpo partiu da observação de mendigos de rua, embrulhados em cobertores de feltro e na constatação de que, na procura de abrigo, os limites do corpo vão se esvaindo, dando lugar às massas, aos volumes que se dissolvem e se reinventam gradativamente, no limiar dos gestos e movimentos.

Na recriação desse conceito, a artista usou plásticos envolvendo corpos mergulhados em água, resgatando a matéria líquida, de que é feita a grande parte do corpo humano. Simulacros de anfíbios, metamorfoses vivas que procuram se reinventar, esses corpos encapsulados, buscavam formas para si mesmos à medida em que gesticulavam, se contorciam, perdiam a memória de suas qualidades individuais e humanas para se materializarem como estranhos corpos naquele plasma azul.

Em Anagramas, Daisy Xavier abre mão das molduras, dos cenários ou recursos extra-corpo e nos envolve numa simples e pulsante paisagem de corpos, um denso enfileiramento de peles. São espaços corpóreos que funcionam despidos de suas personas e se tornam volumes sutis, pausas feitas para se advinhar o sentir dos toques das peles, as texturas dos poros, suas temperaturas.

Essas montanhas de carnes, em sua verdade e sua vulnerabilidade plenas—garantia sublime de sua humanidade--se tornam materiais vivos e latejantes, documentos preciosos da memória corporal.

Aqui somos incluídos num jogo poético de incompletitudes, onde cada peça conta uma história potente, autobiográfica, desnuda, envolvendo quatro gerações: a avó, a mãe (a artista), a filha, a neta. São quatro mulheres que emprestam as particularidades de suas vidas e de seus corpos para a criação de uma outra natureza. Trata-se, aqui, de uma natureza sem limites precisos, plena de pulsações, de deslocamentos, de respiros, de desigualdades, de pequenas simbioses.

Esses relevos de carnes se tocam, se encaixam, ora se debatem delicadamente; se enroscam, se dobram, se enrugam para esticar-se depois. Esses corpos se entrecruzam feito árvores plantadas muito proximamente, e que crescem e se expandem milimetricamente no tempo.

Nessa movimentação contínua, seja ela congelada na seqüência de obras fotográficas, ou fluída na projeção dos vídeos num aquário--resgate do caráter plasmático das matérias internas de que são feitas o corpo humano e forma que alude ao útero materno--as peles passam a desenhar contornos de afetos. Os pedaços de corpos, juntos, se tornam caixas, receptáculos de narrativas de vidas enfileiradas, amontoadas, grudadas, miscigenadas, unidas pelas vias da cumplicidade genealógica.

Essas montanhas de carne são abrigos da alma. São invólucros que apontam para a possibilidade, através das relações mundanas, carnais, das trocas que estão contidas nos orifícios e nos poros, de se atingir uma forma de refinamento na capacidade de ser e de sentir, na abertura de uma espécie de trilha de acesso às potências espirituais do mundo.

Esse compacto de massas corpóreas se tornam verdadeiros anagramas à medida em que exercitam um jogo de partes que se entrelaçam. Ali membros se transplantam de corpo para corpo, migrando de espaço e nos confundindo, num trompe l´oeil suave, atribuindo translucidez às superfícies, em suas capacidades de se difundirem, como um feto crescendo no útero.

No contato, na fricção, no roçar constante de uma pele contra a outra, toma corpo uma ação que leva aos aprofundamentos da superfície do corpo, aproximando almas, aguçando sentidos, adensando os momentos presentes de cada uma das experiências de vida.

Nesse contínuo reinventar-se da pele, os tempos se expandem. Na direção inversa da equação dos vários espaços cruzados num só tempo, algo garantido pelo desenvolvimento tecnológico dos aviões a jato, pela cultura cibernética, pela internet, temos nesses anagramas, um acúmulo de tempos amontoados num só espaço. A existência de quatro mulheres, quatro histórias vividas em quatro gerações, se torna uma grande e única massa, ocupando compactamente o espaço de uma obra de arte.

Finalmente, os contornos precisos de cada um dos corpos, de cada um dos eus, agora, se apagam lentamente e se permitem uma troca sutil. Uma somatória de volumes se organiza, se recompõe lenta e provisoriamente, num aglomerado instável, num pacote de alteridades que constitui a identidade contemporânea.

É, afinal, pelos muitos “outros” que confrontamos que o eu se define.

De fato, no mundo pós-moderno, globalizado e desigual, o processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades, tornou-se mais variável, problemático e provisório. Nas palavras do sociólogo britânico Stuart Hall, “esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”(3). De acordo com Hall, a identidade hoje se torna uma celebração móvel, algo como a montanha de corpos friccionados com que Daisy Xavier nos oferece.

Nesse jogo de hibridismos, de identidades que parecem próximas a entrar em fusão, a embaralhar seus limites e se tornar corpos mutantes, o que a artista nos oferece é, na verdade, um desmascaramento da idéia de pele como limite do eu. Ela se torna, ao contrário, um repositório de transfusões, de contaminações múltiplas, e de recombinações imprevisíveis.

No decorrer do tempo, afinal, através das experiências corpóreas, das trocas cotidianas, do entra e sai de ar, de suor, de fluídos e de emoções canalizados pelas vias dos poros, nos misturamos com o mundo, nos nutrimos uns dos outros, deixamos nas alteridades algo de nosso e até nos juntamos a elas e ora confundimos os limites de nossos corpos.

Eis uma contemporânea lição de amor e de generosidade onde os vários eus se decidem no outro.

*Katia Canton é PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York. É professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de S. Paulo.

Notas:

1em Os Cinco Sentidos (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001).

2-em O Fogo Libertador (São Paulo, Iluminuras, 2000).

3-em A Identidade Cultural na Era da Pós-Modernidade (lRio de Janeiro, DP&A, 2000).

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