vídeo-instalação de Daisy Xavier e Célia Freitas
Desde 1996, a artista Daisy Xavier desenvolve uma série de investigações sob o título genérico de “Anfíbios”. Os resultados têm sido instalações e fotografias que não deixam de trazer o lastro do trabalho pictórico – explorado há vários anos por Daisy – pelas fortes presenças plástica e cromática que generosamente compartilham o espaço de exposição com os elementos conceituais ou reflexivos. Se o corpo era uma alusão sempre presente nas pinturas, passou, a partir dos “Anfíbios”, ao estatuto de objeto direto da ação do trabalho. A poética do corpo condensada nessa pesquisa se expande na direção das fotos nas quais volumes de fragmentos de corpos femininos de diferentes idades se superpõem num atrevido e intenso jogo de peles. As fotos de modelos submersos eram vultos ensacados que insinuavam uma forma mas nos vedava a apropriação direta, do mesmo modo que a instalação realizada com os cobertores cobrindo corpos como nos dormitórios em que se transformam, para os moradores de rua, as calçadas das grandes cidades.
Toda essa experiência acumulada adquire, agora, a configuração monumental da vídeo-instalação “Nadando” , realizada a quatro mãos, em parceria com a cineasta Célia Freitas. A multiplicação de um módulo mínimo de repetição – na forma de gestos – está embutido nos reflexos automáticos incorporados por cada cultura no caminhar, no correr, no nadar. O nadar encontra-se naquela capacidade de transformar um ambiente, por natureza hostil, em ambiente natural. Conta-se – não sei se os pediatras confirmam – que se um bebê humano for atirado n’água “sai nadando”, e que a perda dessa vocação natural se dá posteriormente pela sua inscrição no estado de cultura. Será preciso, mais tarde, um novo adestramento e aprendizado para que essa aptidão seja recuperada. Aquele que nada é um anfíbio por aptidão adquirida, não por destino genético. Tudo isso está presente em “Nadando” de Daisy e Célia e muito mais. O módulo mínimo repetido – como os rigorosos intervalos musicais de Terry Riley ou Steve Reich – são multiplicados e sofrem variações simultâneas de direções e se transformam numa composição de Phil Glass. Se quiserem um exemplo mais próximo, aqui vai: os poucos ritmistas presentes – na verdade o mesmo clonado pelos recursos eletrônicos – não estão recuados enquanto esperam a escola passar, evoluem o tempo todo sem atravessar o samba e se transformam no próprio show. A espacialidade contrariada pela disposição em ângulo das duas grandes telas e dos oito projetores produzem uma dinâmica paradoxal: à lentidão do ritmo da nadadora se opõe a vertigem das múltiplas direções que convergem para esse infinito muito próximo que se encontra no canto da parede da projeção.
Nesse trabalho, a arte contemporânea brasileira dará mais uma vez a demonstração de sua capacidade de lidar com as grandes questões – como a compressão de tempo e espaço na vida moderna – e ao mesmo tempo não deixar de lado a beleza, a generosidade plástica e suas características locais. Afinal, quem poderia melhor trabalhar com a água numa manifestação de linguagem poderosa e cheia de luz, senão o artista nascido na terra dos rios e das praias cheios de sol? Tudo isso sem folclores artificiais e demagogias nacionalistas.
Paulo Sergio Duarte