Ligia Canongia
A criação poética é um campo movediço e polivalente que atravessa a ordem positiva das coisas. O fato de a ‘rede’ ser um ícone constante na obra de Daisy Xavier constitui um sinal claro de referência à própria natureza do gênero poético em suas finalidades, assim como ao atravessamento semântico que ele produz. Afinal, a rede, no belo dizer da artista “apenas finge que é proibido ultrapassar o que ela limita”¹.
A rede e a poesia fingem. Estão dispostas a fazer transgressões no espaço de nossos sentidos e sensações, como prestidigitadores que quisessem fazer desaparecer nossos elos lógicos com o mundo. E na instalação Mesuras, elas se unem para deslocar nossas próprias âncoras, fazendo-nos navegar à deriva em águas extraordinárias.
A ambivalência do título já indicia o campo movente onde pisamos, pois mesura é palavra dupla, que remete, simultaneamente, às idéias de medida e reverência. Ao mesmo tempo em que a obra opera com a medição matemática, através da medida padrão que tece os nódulos das redes, assim como de sua disposição espacial conforme as proporções da arquitetura, a obra também tenta criar uma métrica impossível, que seria a medida dos afetos. Mesuras seria assim uma tentativa de fazer convergir o aspecto tangível e concreto das coisas a realidades outras, cujas distâncias são incomensuráveis.
Suspensas e vertidas ao chão como uma cascata, as redes de cobre são fios translúcidos, quase líquidos, que se derramam no solo silencioso, mas com a abundância das quedas d´água. O mar é a figura que ronda os espaços vazios, como se fosse reversível ao ar, e com ele criasse um mesmo fluxo. E são os aspectos líquidos e aéreos da instalação que vão configurar a sua extrema imaterialidade. Com suportes e meios de baixa densidade física, a obra, contudo, mantém uma energia circulatória impressionante, que atravessa muros e desemboca num redemoinho maciço de cobre, como o ponto terminal de uma gravidade desconhecida.
Prodigiosa, essa força nos arrasta para a última sala, que é a ponta máxima do redemoinho, como viajantes tragados por seu vértice afunilado. Como a fantasmagoria de Edgar Allan Poe na descrição do redemoinho de Maelstrom, e sua “sensação estranha e maravilhosa de novidade que confunde o espectador” ², somos levados pela corrente das redes em direção ao mar, que surge projetado num segundo ambiente, sobre o vidro das janelas. Não sem antes, contudo, presenciar a passagem dessa correnteza pelo furo aberto na primeira galeria, que elucida o poder de transbordamento das águas, atravessando os espaços, em fluxo vertiginoso de expansão. Esse furo, foco de sucção de nosso olhar, leva o acontecimento plástico para outro espaço, dando continuidade ao movimento expansivo, e quebrando a resistência dos limites.
No último ambiente, onde desemboca todo o fluxo, a imagem do mar finalmente comparece. Na ‘paisagem’ de Daisy Xavier, no fundo uma estranha marinha, o mar é sublimado pela velatura transparente das redes, na primeira galeria, até ganhar visibilidade notável, na segunda, sob forma de projeção videográfica, em segmento realizado com parceria de Célia Freitas.
A projeção luminosa ‘não cabe’ nos enquadramentos que lhe são impostos, furando a transparência das janelas e ganhando o espaço externo, vertida no mundo. Apesar das mesuras, portanto, a instalação está sempre a varar espaços e ultrapassar suas próprias fendas, avançando para além das regras que se auto-impõe. Abundante e silenciosa, a obra interpõe entre suas rotas mensuráveis um campo excêntrico e digressivo, que aponta para o que está fora, além fronteiras, além dos vértices dos redemoinhos, lá, onde se desenham os ideais de infinitude .