Entre o ar e a água
A extensão vertical dessas pinturas de Daisy Xavier cresce e nos envolve, vai muito além do nosso corpo. As telas são grandes, mas não são gigantes, é como se houvesse adequação entre a escala da pintura e a ampliação desses fragmentos. Ela nos ergue, numa alusão direta ao corpo e não a uma paisagem, nos põe de pé, mas não exige uma “posição de sentido”, antes nos solicita o movimento, quer que nos aproximemos dos detalhes materiais da superfície e logo nos pede a distância para que possamos percorrê-la por inteiro e nesse vai-e-vem encontra-se um dos seus segredos. Esses movimentos são, também, esse exterior, sem o qual ela não se entrega. Mas não é o movimento que sempre despertou toda grande tela, aquele que nos obriga para ver o todo, o recuo, e a aproximação para descobrirmos os detalhes. Trata-se de um movimento interior ao trabalho que é exigido ao sujeito que o observa, um movimento que se exterioriza e passa a nosso corpo. É outro movimento porque não estamos na vigência de totalidades, como nas grandes telas históricas do passado ou mesmo das modernas abstrações tributárias de uma crença na psicologia da Gestalt, mas de fragmentos que vemos por inteiro, mas nunca poderão ser o Todo. Esses enormes fragmentos são detalhes de uma pintura que se condena a nunca se concluir, nem sequer se permitem evocar essa ilusão.
Bem próximo ou afastado da tela, estou sempre diante de fantasmas, no estrito sentido psicanalítico do termo, que se materializam visualmente. Essa última afirmação é perigosa e por isso exige correções. A pintura está distante de qualquer ilustração surrealista de fantasias oníricas, ou mesmo da utilização de técnicas associativas. Se há livre associação aqui, ela estará sempre do lado de cá da tela, entre as alternativas de fruição de quem as observa, não na sua constituição. Essas pinturas são, ao contrário, a manifestação da aguda consciência do caráter sempre atual, incompleto e ilusório da própria consciência. Mas, por que têm que se oferecer sob a forma que evoca fósseis, restos de um passado? Porque Daisy insiste que a memória viva do presente não pode existir sem essa condição de, no mesmo momento em que se realiza, já se referir a um pretérito sempre imperfeito, deformado pelo desejo e pelo recalque do que não foi possível retornar à consciência. A pintura, por isso, se afasta da ilusão realista ou de qualquer forma ideal, e quer ainda mais distância do mundo da certeza e da precisão que se estabeleceu como o regime de verdade da nossa época. No entanto, nessa negação, se dá as costas ao mundo tal como ele nos é oferecido nas formas vigentes, o reconstroi na presença da fantasmática do corpo, na imagem possível depois dessas sucessivas recusas. E ele nos aparece como assombro e ruína, como mãos que se tocam literalmente desencarnadas e massas encefálicas expostas.
O ser “anfíbio” da temática de Daisy parece não aspirar à terra, permanece entre o líquido e o aéreo, entre o ar e a água, entre o azul do céu e o verde do mar. Não quer o repouso firme de um terreno seco, nem mesmo a região pantanosa, a lama incerta da fronteira. Prefere a região fluida onde as figuras e as coisas irão se instalar sem a firmeza de um chão, onde a superfície da tela se desdobra em materiais quase transparentes como as tramas abertas formando bolsas que capturam o ar sem o aprisionar, enunciam o vazio, sem insistir na sua permanência, mas o lembram como momento de um estado do ser. Algumas vezes, as telas estão feitas aos pedaços e costuradas de partes díspares que se encontram e se adequam, aceitando que a pintura possível não pode ser contínua e homogênea, mas resultado de uma construção que não obedece a nenhuma engenharia exterior com suas regras a priori. Aqui, emerge uma poética da memória do corpo, mas não do corpo visível, frontal, que vislumbro diante do espelho; tampouco o deste corpo vidente que se confronta com as telas, mas de um corpo dinâmico que capturo por um instante e logo se desprende no imaginário. Desses pedaços - que, sem querer, vou juntando e fazem parte de mim e me retratam melhor que as fotos três por quatro nos documentos burocráticos da minha identidade exterior - vem essa outra identidade, que nunca terei concluída, que faço e refaço, tantas vezes à revelia de minha vontade, e a encontro nessas telas que também se fazem e se refazem pelo trabalho da pintora, pelas camadas de tintas, pelas costuras dos retalhos, pelos objetos depositados - registros do mundo exterior que vêem habitar essa morada. A pintura de Daisy Xavier não nos dita estratégias, quando procura nos devolver a memória do corpo, nos lembra que é também memória da arte. Por isso, oscila entre figura e abstração, entre determinação e indeterminação, entre plano e volume, entre o acaso e a construção arbitrária. Nessa outra memória, corajosa, fica sozinha, não procura semelhanças, referências ou citações. Quer ser só a pintura de Daisy Xavier.
PAULO SÉRGIO DUARTE - 1999