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Arqueologia da perda

Trazer à tona a memória como um processo de definição do sujeito constituiu-se um dos mecanismos estruturantes mais contundentes da modernidade. No caso das artes plásticas, o exemplo mais conhecido foi o dos surrealistas, que, ao problematizar a linguagem e o significado dos objetos, criavam situações de desvios e desconcertos à ordenação cotidiana do banal. Mas a memória pode ser controlada, não transbordaria ela justamente da nossa competência de auto-coerção? Poderíamos argumentar este problema como uma das chaves das obras de Daisy Xavier. Há o que chamaríamos de (permitida-nos bastante liberalidade com o termo) um contínuo trabalho de dessublimação. Conjugadas estas duas noções em uma só expressão, trata-se de, evocados ou não certos afetos privados em relação a determinados objetos, reprocessá-los, conferindo-lhes outra potência que não somente aquele de um indício de algo vivido. Talvez, eles sejam mesmo uma anti-memória (no sentido, inclusive e em parte, evocado por Malraux – menção esta que, como veremos adiante, pode ser aproximada ao trabalho que protagoniza esta mostra), ao estornar do objeto o limbo do ensimesmamento. Anti-memória, que deriva entre momentos de monumentalidade e anti-monumentalidade como se evidencia no que há ali de construção: desnecessário cometer a redundância de argumentarmos que, naquilo referente à memória, ela também produz seus modos de construção. O que se pretende enfatizar aqui é um certo sentido de ordem a ele conferindo, evitando com que o olhemos sob abordagens algo convencionais como “caótico”, “equilíbrio malabarista”, “improviso”, entre outras. Mesmo se identificarmos esta ordem como uma ordem invertida, nos seus ajustes de pesos, balanços e charneiras. Nesse momento se passa de uma relação mental para uma articulação física do objeto.

Por conta disso entra em questão a leitura feita por Daisy da Batalha de San Romano, de Ucello. Trabalho maturado durante anos, ele intercala agora um outro Malraux – o do Museu Imaginário – com o problema de ordem visual e espacial advindo do mestre renacentista italiano: como recolocar aquela profundidade da pintura em um espaço instalativo e literal? Se em outras obras isso se manifestava (do ponto de vista formal) na corporeidade material e escultórica assumida pela linha arabescada, aqui vai além da volumetria de um elemento isolando, criando-se uma espécie de campo; campo este que ocupa estrategicamente uma área intermediária entre a pintura (a parede) e a escultura / instalação (espaço em torno). É a Batalha de Daisy, ademais, que oferece um fio condutor para outras peças ali mostradas, uma vez que assume-se a tônica das modalidades do olhar. Dito de outra maneira, nas pequenas esculturas que, ao solicitarem do visitante uma aproximação para que enxerguem através de uma lente, quebram um ponto de vista distanciado ou ideal. Vistos juntos com os desenhos e pinturas, alternam as diferentes situações de espacialidade que perpassam a exposição e se espraiam em vários eixos, deslocando, por extensão o lugar do espectador, ou seja, colocando ele sim em uma posição instável, na qual a subjetividade, precisando se reequilibrar, assume para si como possibilidade de permanente reconstrução o sentimento da deriva.

Guilherme Bueno                                         

 

Daisy Xavier – Arqueologia da Perda

19 de julho a 18 de agosto de 2012

Anita Schwartz Galeria de Arte

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