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As fendas
Quatro gerações de mulheres. Quadro geracional do
feminino. O que se transmite de uma mulher para outra mulher nessa cadeia ? A
feminilidade ? A pergunta sobre “ o que é uma mulher ? “ que cada uma lança
para a mãe, a avó, as tias, as amigas de todas elas, além das suas próprias -
não tem resposta que possa ser transmitida. Eis o que aprendemos a partir do
divã. As mulheres desfolham, descascam, desmascaram e decifram as diversas
mulheres das gerações anteriores tateando uma resposta. Debalde! Só
encontram meros traços que tomam emprestado a uma ali, a outra acolá. O que elas têm em comum
além desse nome tão mobile que se diz mulher ?
 O novo trabalho da artista plástica e psicanalista Daisy Xavier (na Galeria
de Arte Contemporânea de Laura Marsiaj - Ipanema) não pergunta nem responde, expõe.  O
material são fotos em preto em branco e um vídeo em cores  ( ou melhor dizendo
quatro vídeos, um ao lado do outro, formando um retângulo projetado numa caixa
de vidro com água ) de um grupo de mulheres desnudas : sua mãe, ela própria,
sua filha, sua neta.  Mas só o sabemos porque nos foi dito, pois não vemos
rostos, nem mãos e sim  corpos entrelaçados. Mas não corpos inteiros e sim pedaços,
partes ampliadas, que não  reconhecemos a que recorte anatômico do corpo pertencem.
De que corpo se trata ? Não se trata do corpo cartesiano como extensão
opondo-se ao cogito da razão. Não estamos aqui no âmbito do parte extra partes.
Tampouco se trata da oposição salientada por Lacan, no estádio do espelho, em que
de um lado temos o  corpo inteiro com sua imagem gestáltica unificada e, do
outro, as imagens do corpo despadaçado como encontramos na esquizofrenia e na
hipocondria. E, no entando, os corpos em exibição não aparecem inteiros. Porém
não estão aos pedaços nem sangrando como na obra de Francis Bacon.
A exposição nos mostra os esconderijos do corpo : as dobras, os rêgos, as
reentrâncias, as cavernas, os becos,  os cantinhos, os fundos, os abismos, as
fendas. Não se trata da fenda perpetrada por Fontana, pintor argentino do
movimento Madi, que rasgou a tela do quadro figurando materialmente uma fenda.
Aqui a fenda é transitória : ela  se faz e se desfaz, de repente surge e tão logo
some. São os  femininos do corpo em que o olhar penetra abismado em mistério.
O continente negro, diria Freud. O não-todo, diria Lacan. Indizível e
indecidível. Retrata o feminino que marca as carnes transformando-as em corpos com
curvas e ocos, morros e poços. Esse  feminino da carne feita corpo se opõe a
seus obeliscos, cotovelos, dedos, falos, narizes, protuberâncias, fâneros,
protusões. Daisy Xavier expõe um erotismo para-além do falo, que roça  o materno,
que é terno certamente, mas é um  materno sem leite. E no entanto deleita.
O  vídeo em cores das tranças de corpos formam  fendas inéditas e
inesperadas. A mudança de cada plano é acompanhada de uma explosão, que disseram-me ser
do flash. Porém, mais parece explosão da flesh. A cada nova fenda um Big Bang.
E tudo recomeça. O traço em comum dessas quatro mulheres, de quatro gerações,
nos quatro cantos, é justamente a falta. Falta um traço que diga algo sobre o
que são, sobre o que pode ser transmitido de mãe para filha a respeito do
feminino para-além das identificações a certas características familiares. Mas a
trança é comum. E resta a fenda estranha que num instante está alí e no outro
não mais. Daqui a pouco se constitui uma outra inaudita, absoluta e no entanto
transitória, fugaz. A multiplicidades de ocos e regos, furos e buracos, túneis
e trincheiras ultrapassa de muito o número dos buracos mucosos que a anatomia
descreve. O corpo são fendas. Eis  um inusitado álbum de família.

 

Rio de Janeiro, 1° de outubro de 2003
Antonio Quinet  (psicanalista)

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