A natureza tradicional da escultura lida com corpos sólidos, de materialidade física concreta. Assim foi ao longo dos séculos, até os modernos iniciarem o processo progressivo de desmaterialização do volume, tentando fazer do vazio um elemento ativo na construção. Hoje, as formas materiais de uma escultura podem trafegar entre o sólido e o líquido, entre os cheios e os vazios, trabalhar com corpos em transição, com matérias de potencial entrópico, que se alteram no espaço e no tempo.
O trabalho de Daisy Xavier é uma investigação a respeito da qualidade desses estados, das formas mutantes que os corpos podem assumir ou simular. A partir do “empacotamento” de matérias e objetos indiscriminados, feito com redes, chega-se a um novo volume, maleável, composto por todas aquelas partes isoladas e agrupadas a esmo, um volume com outras características materiais, outra densidade, outro peso, embora igualmente indiferenciado enquanto forma.
Man Ray, em 1920, criou a escultura “O Enigma de Isidore Ducasse”, empacotando uma máquina de costura com tecido e corda. O resultado foi um objeto de estranheza profunda, cujo conteúdo, envolto no emaranhado dos panos, tornava-se desconhecido e “enigmático”. Era uma forma a encobertar outra, a trair a origem e os limites da outra, a formar, juntas, uma terceira imagem. Christo enveredou pela brecha de Man Ray e saiu empacotando o mundo, suas paisagens, seus monumentos, encobertando a visibilidade grandiosa e, ao mesmo tempo, rotineira dos contornos da natureza e da cultura.
Daisy Xavier prossegue o caminho da simulação ou dissimulação dos corpos, aberto pelos dois mestres, e realiza trabalhos que questionam a definição precisa e estática dos volumes e das formas, realçando sua capacidade de transformação. Verdadeiras “massas” ambulantes, sacos e postas com limites indefinidos, seus “Anfíbios” refletem não apenas a possibilidade do movimento atuar sobre a aparência formal das coisas, como a possibilidade delas serem alteradas por um revestimento ou camada superposta – rede ou tecido –, que a tudo vela, uniformiza e indetermina.
Anfíbios são animais ou plantas que podem viver tanto na terra, como na água. Como eles, as esculturas da artista também transitam por estados, formas e lugares múltiplos, ajustando-se, por sua maleabilidade, a tipos diversos de espaço. Viver dentro e fora, cá e lá, indiscriminadamente, é uma prerrogativa que esses trabalhos possuem, ao se darem ao mesmo tempo como continente e conteúdo sem faces estanques, em eterno devir, no interior e no exterior. São obras que buscam dar ao corpo o senso móvel do inconsciente, fazendo da matéria algo que escoa no fluxo do tempo e da memória; o corpo, ele também, como um magma que se desenrola segundo condições existenciais.
Foi a partir das esculturas-sacos, dos empacotamentos, que a artista passou a colher fotografias de mendigos enrolados em plásticos e cobertores, dormindo nas ruas. Estava ali o próprio corpo humano a surgir como massa imprecisa e móbil, como aquele conteúdo desconhecido e estranho do “enigma” de Man Ray. Uma forma sem limites, sem perfil, sem cara. Um volume dramático, mas de um drama sem destino e sem clímax. Formas sem nome, carentes de linhas e de designação.
Essas obras fotográficas são “esculturas” que só poderiam ocorrer fotograficamente, ou “fotografias” imbuídas de potência escultórica. E elas prenunciam outro conjunto de obras, a última produção de Daisy Xavier, em que a mídia, mais uma vez e necessariamente, tinha que ser fotográfica. Mantendo a lógica do trabalho e a idéia básica do empacotamento, a série das fotografias azuis e aquáticas – também denominada “Anfíbios” - é um desdobramento maduro dos segmentos anteriores. Só que, agora, os corpos empacotados não são mais objetos ou mendigos, seres ou lixo colhido ao acaso. É o empacotamento de um modelo profissional, contratado para executar movimentos sub-aquáticos, quer dizer, aqueles movimentos ainda possíveis a um corpo amarrado no fundo da água, tentando evoluir em um meio fluido e difícil. Novamente, a indefinição dos limites desse corpo, a sua equivalência ao magma disforme das outras peças está em cena. Só que a água acentua não somente a imprecisão do corpo como a indeterminação do espaço onde ele, ao mesmo tempo, penetra e flutua. A massa branca desse corpo, sem forma clara, sem presença palpável, sem volume compreensível, parece desmaterializar-se, perder densidade, dissolver-se no meio que a acolhe. Mais do que nunca, a dissolução da forma e da matéria se impõe, e elas se tornam absolutamente voláteis. Por certos momentos, a desmaterialização é tão intensa que o corpo vira pura luz, atravessado e indefinido pelos clarões e rasgos da iluminação natural. A matéria vira líquido, o corpo se esvai, e a escultura perde corpo e vira “fotografia”.
O azul e o branco são as únicas cores, e esse cromatismo rarefeito incrementa a própria ausência dos contornos, que não se identificam mais nem pela linha, nem pela cor. É tudo uma mesma matéria uniforme - corpo e contexto -, é tudo água, fluência, volubilidade.
Diferentes dos sacos de mendigos e de outros empacotamentos de corpos, os sacos na água são trabalhos oníricos, tênues, femininos e delicados. Diluem a dramaticidade da imagem, dissolvem o peso dos volumes, liqüefazem o ser material, tornando-o tão somente um ser fantasmático, livre do “corpo”, pura inconsciência, água. Verdadeiramente “anfíbio”.
O azul, que também estava na cor das redes que empacotavam ou encobriam as primeiras esculturas, talvez já indicasse, naqueles trabalhos, a idéia da água ou do mar enquanto diluidor de perfis, solvente das matérias e da visão que se tem delas. E é essa ausência de limites, de tudo que conduz à definição das formas e das “verdades”, que dá sentido ao trabalho de Daisy Xavier. Ela dissimula a materialidade da escultura, que não se dá a ver, e nem é vista, em sua plena integridade; em sua forma final; uma escultura que se distorce no espaço e se distende no tempo. Obra com faces múltiplas, transformáveis, que é dentro e fora, corpo e alma, sólido e água, o trabalho de Daisy Xavier é, segundo suas próprias palavras “minha única memória do que nunca se passou”.